Em apenas uma década, quase 1 em cada 5 empregos formais no jornalismo desapareceu. No mesmo período, ganharam corpo iniciativas independentes de jornalismo e comunicação, alternativas aos grandes conglomerados, e que buscam, em meio a tantas dificuldades, reinventar sua própria sustentabilidade.
Temos então, um ecossistema frágil de trabalho: menos estabilidade e mais precarização, marcada por terceirização e pejotização. Onde empreender, muitas vezes, não é opção, mas necessidade. Nós já falamos um pouco sobre isso em artigo publicado pela diretora de sustentabilidade da Énois, Simone Cunha, e pela coordenadora da pesquisa da Retrato do Jornalismo Brasileiro, Angela Werdemberg.Como o estudo Retrato aponta, nesse ecossistema temos, de um lado, muitas mulheres negras e periféricas que têm de pagar para manter suas iniciativas. São CEOs voluntárias, como descreve o CEERT, parceiro da Énois na pesquisa. De outro, jornalistas homens brancos desenvolvendo suas iniciativas e conseguindo contratar até 5 funcionários.Você pode ler mais sobre isso nesse post.
A professora Roseli Figaro, coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (ECA-USP), que estuda as mudanças trabalhistas na área há 20 anos, aponta que essa não é uma crise pontual do jornalismo ou da comunicação. Outras áreas, como a educação e as artes, passam pelo mesmo. Isso porque, como destaca Figaro, “a agenda contemporânea dos últimos 20 anos do neoliberalismo é extrair mais valor do trabalho”. O que, por meio de uma campanha narrativa e ideológica, transformou a luta por direitos em “coisa de quem não quer trabalhar”. Esse processo, agravado pela crise de 2008, pela ascensão das empresas de plataformas digitais e pela pandemia, caminhando para um agravamento.
Figaro alerta que com a chegada da inteligência artificial generativa, há risco de uma banalização do trabalho humano, transformando quem não se encaixa no modelo de “empreendedor de sucesso” ou “influencer”, em cidadãos de segunda categoria, forçados a sobreviver em condições cada vez mais frágeis.”Isso não vai parar, isso vai se aprofundar. Com a inteligência artificial generativa, nós vamos ter um aprofundamento ainda maior com a precarização e a desespecialização e a banalização do trabalho humano. Quem não pode ser um influencer, quem não é um sucesso como empreendedor, passa a ser um cidadão de segunda categoria que tem que trabalhar em condições vis para sua sobrevivência”, alerta Roseli.
Enquanto se enfrenta esse cenário, as condições de trabalho obrigam a ceder um recurso valioso que comunicadores e jornalistas têm em suas mãos: o conhecimento sobre nosso ofício.
Todos os dias, sem sequer perceber, quando ligamos o computador ou pegamos o celular para trabalhar, livremente fornecemos dados que são usados por Google, Meta e Microsoft para gerarem novos produtos que serão vendidos a nós para seguir fazendo um trabalho precarizado. O centro de pesquisa tem estudado essa realidade e também acompanhado de perto, desde 2010, organizações fundadas por jornalistas para produzir jornalismo de qualidade, voltado a causas populares e democráticas.
Depois da pandemia, os pesquisadores e pesquisadoras da USP queriam saber como estavam as iniciativas. Das 70 inicialmente levantadas, 47 ainda estavam ativas. Essas iniciativas resistem, mas em condições de dependência tecnológica cada vez maiores.
Diante do cenário de precarização e dependência das plataformas digitais, surgiu no CPCT a pesquisa “Datificação da atividade de comunicação e trabalho de arranjos de comunicadores”, financiada pela FAPESP. Ela analisou os termos de uso dessas empresas, revelando que todas reivindicam posse e uso dos dados de usuários de forma dissimulada.
“Você tem que se aprofundar na leitura e na investigação pra chegar nessa conclusão de que todas elas fazem isso. E ainda assim, não temos clareza para que usam os dados”, aponta Figaro.
O CPCT também levantou como as big techs operam financeiramente, como os dados são capturados, como registram patentes e transformam dados em novos produtos. No início de novembro, um relatório sobre o perfil das empresas será publicado no site da pesquisa.
O ponto é que a questão é estrutural e coletiva: exige movimentos organizados que reconheçam o trabalho comunicacional como valor e reivindiquem direitos também sobre os dados gerados no processo.
Exigem o entendimento do campo da comunicação como uma classe de trabalho, uma articulação pela valorização do trabalho, que traria benefícios e estabilidade a todos.
“Se essas iniciativas jornalísticas têm de fato interesse na democracia e no bem estar da população, precisam se ver dentro desta luta. Não existe um planeta em que a gente possa se refugiar dessas condições. Não é com a verba do Soros, da Ford, etc, que nós vamos resolver esse problema. Essa é uma saída individual”, provoca Figaro.
“O problema é muito maior. A gente tem que se olhar nesse conjunto. De fato ter elementos pra provar que o nosso trabalho está sendo espoliado e estamos passando por uma despossessão do nosso saber fazer, e isso vale muito dinheiro. Precisamos provar isso e fazer um movimento pra exigir o que é nosso.”
Enquanto o STF não decide sobre a legalidade da pejotização, sindicatos e coletivos lutam por contratos mais justos, pisos salariais e canais de denúncia.
Paralelamente, o Atlas da Notícia 2025 mostra uma queda nos desertos de informação, puxada por veículos digitais e comunitários.
É um sinal de resistência, mas a manutenção e sustentabilidade a longo prazo dessas organizações é ponto crucial para que não reproduzam e nem se deixem capturar pelos mecanismos de exploração.
Na Énois, acreditamos que empreender na comunicação deve significar estruturar trabalho justo e digno, e não precarizar. Debater sobre direitos e a datificação do trabalho é disputar também as condições de vida e de democracia para quem faz comunicação nas pontas. Como você e sua iniciativa têm refletido sobre esses temas? Esse debate têm sido levantado nos grupos com os quais você se relaciona? Que soluções têm sido pensadas coletivamente?
