Cuidar da narrativa é parte da pauta: cobrir pessoas trans com responsabilidade

A forma como contamos essas histórias importa — e pode reforçar preconceitos. Como fazer diferente?

A pauta trans tem ocupado o centro dos debates públicos – e com isso, também os feeds, as redações e os trending topics. O caso da deputada Erika Hilton, que teve seu visto emitido com nome morto e gênero incorreto pelo governo dos EUA, acendeu um alerta. Enquanto isso, empresas e instituições como a USAID anunciam retrocessos em políticas de apoio à população trans. Esses sinais mostram que estamos diante de uma ofensiva coordenada, que usa cargos de poder para minar direitos e identidades.

Organizações trans estão atentas, refletindo as consequências desse cenário, como pontua Caê Vatiero, diretor institucional da Transmídia Jornalismo.

“A avaliação da Transmídia é de que vivemos um momento de tensionamento. Embora haja avanços importantes em termos de visibilidade e reconhecimento, como decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconhecimento de gênero neutro e mais universidades aderindo cotas trans, esses direitos continuam sendo sistematicamente atacados por discursos conservadores, políticas excludentes e pela ascensão de uma extrema direita que instrumentaliza o ódio contra pessoas trans para mobilizar sua base. Somado a isso, temos a desinformação, que na nossa avaliação é uma das principais estratégias para atingir vidas trans e travestis.”

Nesse contexto, a comunicação tem um papel decisivo. Não basta acertar nos pronomes ou fazer perfis celebrativos em datas comemorativas. A forma como construímos nossas narrativas pode, mesmo sem intenção, alimentar a transfobia. Quando uma matéria não contextualiza o preconceito estrutural ou destaca polêmicas sem cuidado, ela se torna munição para quem já está mobilizado contra os direitos dessa população. A comunicação não pode, portanto, esquecer que também tem função educativa.

“Não queremos nossas matérias virando combustível para comentários de ódio ou para reforçar a vilanização de pessoas trans. Precisamos reeducar os nossos públicos – e também a nós mesmas – para narrativas mais éticas, cuidadosas, plurais”, alerta Sanara Santos, diretora da Énois e da Transmídia Jornalismo.

Isso não significa que não se deva falar sobre temas sensíveis, como transição de gênero na adolescência ou amamentação por pessoas trans. Mas é preciso saber como contar essas histórias. Quem são as fontes? Qual o título escolhido? Que imagem acompanha o texto? Qual o impacto provável na audiência? O caso recente da Folha de S. Paulo, por exemplo, cuja matéria desembocou em transfobia a partir da realidade da amamentação realizada por pessoas trans, mostra como os veículos podem falhar na abordagem e abrir espaço para o preconceito.

“Acertar o pronome ou incluir uma fonte trans é só o básico. Uma cobertura ética exige centralidade trans na narrativa, com pessoas trans falando por si e também sobre outros temas. É preciso contextualizar as pautas, mostrando as causas estruturais da transfobia e as suas interseccionalidades com o racismo e a misoginia, por exemplo. A presença de jornalistas trans nas redações é outro fator essencial para transformar o jornalismo brasileiro”, reforça Caê Vatiero.

Ser aliado, na comunicação e no jornalismo, não é só ampliar a voz e as pautas, é garantir que essas vozes sejam ouvidas com respeito, contexto e humanidade. E isso exige responsabilidade. Felizmente, existem caminhos e ferramentas para isso.

A Toolbox da Énois reúne materiais que ajudam comunicadoras e comunicadores a repensar suas práticas e a evitar que suas reportagens, ainda que bem-intencionadas, reforcem discursos de ódio. 👉 Bora repensar a cobertura? Acesse e compartilhe com sua rede:

  1. Cuidados básicos com a linguagem ao produzir sobre questões trans
  2. Como falar sobre infância e adolescência trans
  3. Como garantir uma cobertura precisa e sensível das comunidades trans