Comer um prato típico não é só uma questão de gosto, mas também de biodiversidade, saúde, cultura e justiça socioambiental. A culinária local de um território guarda técnicas e conhecimentos essenciais para a nutrição e sobrevivência de um povo. São os sistemas alimentares locais que podem ser vistos como soluções para a vida e para a maior crise que a humanidade enfrenta no momento: a climática.
Sistemas alimentares são as redes que conectam produção, distribuição, consumo e descarte de alimentos, incluindo seus impactos sociais, culturais, econômicos e ambientais. É por meio deles que entendemos como o que vai à mesa está ligado a políticas públicas, ao uso da terra, à preservação da biodiversidade e até à saúde de comunidades inteiras.
Segundo a ONU, eles são responsáveis por mais de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa — e por isso estão no centro das negociações climáticas. De acordo com o Observatório do Clima, “isso ocorre porque os sistemas de produção baseados em monoculturas extensivas e na abertura de pastagens para alimentar rebanhos têm seu modelo econômico fortemente amparado na abertura de novas áreas e no uso de queimadas como ferramenta de manejo.”
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), apenas cinco safras – arroz, trigo, milho, painço e sorgo – fornecem cerca de 50% de nossas necessidades energéticas.
Em contraponto, historicamente, modos de vida tradicionais já sustentavam sistemas alimentares diversos, nutritivos e resilientes. Povos indígenas, por exemplo, preservaram cultivos nativos como a mandioca, o açaí e a castanha, fundamentais não apenas para sua sobrevivência, mas também para a segurança alimentar global. No entanto, ainda hoje as políticas públicas de agricultura tendem a priorizar monoculturas de exportação, que envenenam a terra e as águas, empobrecem solos e fragilizam o futuro.
O Prato Firmeza Amazônia, uma iniciativa da Énois, materializa esse debate ao traduzir conceitos complexos em experiências cotidianas. Isso porque, a produção alimentar amazônica é chave para reduzir emissões e fortalecer sistemas sustentáveis de produção. E cada história contada no livro e no podcast mostra a relação direta entre um prato e o bioma que o sustenta. Em Manaus, a lanchonete J&J compra direto de agricultores orgânicos locais. Em Belém, o Delícias do Bosque serve açaí vindo de quilombolas do Tororomba. São exemplos que revelam como a gastronomia de base comunitária, periférica e orgânica tende a ter baixa emissão de carbono, ao evitar grandes cadeias de produção e transporte, valorizando a biodiversidade e fortalecendo economias locais.
E essas também já sentem nitidamente os impactos da crise climática. Em época de cheia do rio Negro, em Manaus, seu Frank Hudson, que está à frente da Peixaria do Jokka, negócio familiar, observa que as alterações no movimento das águas influencia o custo do pescado. “Às vezes o rio não chega a passar do nível dos lagos, para que saiam os peixes que estão dentro dos lagos. Só quem conhece mesmo pode pegar esse peixe lá nas fronteiras, para poder trazer para casa. Isso tem um custo muito alto. Quando chega aqui, está caríssimo.”, completa.
Em Santarém, Orleidiane Tupaiú, na Aldeia Aminã, nos lembra que alimentar é também preservar território, cultura e saúde frente ao contexto.“As mudanças climáticas podem afetar a produção e a disponibilidade de alimentos tradicionais e principalmente, muita perda de conhecimento tradicional”, afirma com preocupação. Ou seja, manter a lógica do sistema alimentar que se baseia na monocultura que visa a exportação e o desmatamento, predominando apenas o lucro no lugar da segurança alimentar brasileira é uma sentença de morte para culturas alimentares locais e para comunidades que vivem do que plantam, e do que podem fornecer, em pequena escala, para comunidades vizinhas. Esse olhar para sistemas alimentares e para a gastronomia local se torna ainda mais urgente quando lembramos que apenas um em cada três jovens no Brasil sabe em qual bioma vive, segundo pesquisa de 2023 da Aliança Em Movimento. Sem compreender os biomas, fica impossível construir soluções justas para a crise climática que discutam o papel da indústria da alimentação e das opções que governos e empresas têm feito quando privilegiam a monocultura e a produção de gado extensiva. O dado escancara uma desconexão perigosa entre vida cotidiana e território, que só pode ser revertida com educação, cultura e informação acessível.
E você, conhece as frutas, carnes e vegetais típicos do bioma em que vive? Consegue encontrá-los com facilidade e a um custo acessível? Responder a essas perguntas já é se colocar dentro da discussão sobre sistemas alimentares e clima.
“Ao levantar essa discussão a partir de histórias de empreendedores das periferias e lideranças comunitárias com o Prato Firmeza, queremos trazer a conversa pra concretude do dia a dia. Mostrar como discutir sobre alimentação é indissociável do debate sobre racismo ambiental, sobre crise climática e sobre políticas públicas”, afirma Jessica Mota, coordenadora do projeto na Énois.
O Prato Firmeza Amazônia mostra, por meio de textos e do podcast, que comer é também um ato político e ambiental e que, para isso, democratizar informações sobre cultura alimentar pode ser um caminho para garantir o acesso de mais pessoas a uma alimentação adequada. Ele é um espaço de mapeamento, valorização e informação sobre as espécies usadas na alimentação amazônica.
Valorizar ingredientes, saberes e histórias locais significa preservar patrimônio genético e cultural. O Prato Firmeza Amazônia convida as pessoas a se reconhecerem em seus territórios, a defenderem os biomas e a perceberem que escolhas alimentares são escolhas de futuro. Afinal, se a crise climática é global, a resposta pode começar no prato.
